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É preciso mais “intervenção política” para uma alimentação saudável

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Mensagem por Raquel Machado Ter Abr 02, 2019 9:26 am

Desde que nasceu, em 2012, o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), da Direcção-Geral de Saúde (DGS), conseguiu criar em Portugal um “ambiente menos obesogénico” – ou seja, menos favorável à obesidade. E fê-lo através de claras intervenções do Estado, como a taxação das bebidas açucaradas ou a proibição de alimentos pouco saudáveis nos hospitais, defende Pedro Graça, o nutricionista que dirigiu o PNPAS e que em Fevereiro deixou o cargo (no qual foi substituído por Maria João Gregório) para assumir a direcção da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto.

Neste momento, uma das batalhas a travar é pela maior intervenção dos nutricionistas na prevenção das doenças causadas por uma má alimentação. Mas isso choca com interesses estabelecidos. “A alimentação inadequada é o principal determinante dos anos de vida perdidos pelos portugueses”, lembra Pedro Graça. Mas a aposta continua a ser no tratamento e não na prevenção. “Todo o sistema de saúde pede mais recursos, mais médicos, mais enfermeiros para tratar as doenças causadas pela alimentação. Há um complexo medico-medicamentoso, com corporações fortes que fazem parar o país. E os nutricionistas, que têm uma capacidade enorme de prevenir, não são sequer envolvidos. Sendo o elo mais frágil, estão a afastar-se do processo quando deviam estar no centro dele.”

Pedro Graça acredita que “para a nutrição se afirmar em Portugal ainda precisa que a intervenção do nutricionista seja associada ao ganho económico” e, por enquanto, “tem havido pouco esforço para dizer que ganho económico representa o facto de uma família comer melhor”.

Defende que os nutricionistas deviam intervir noutros momentos – como já aconteceu, aliás, na elaboração do cabaz alimentar para as famílias mais carenciadas. Num país em que “a diabetes tem o dobro da prevalência em pessoas com menos escolaridade” e outras doenças estão igualmente ligadas ao estrato social – “diz-me quanto ganhas e eu digo-te que doença tens” – um Estado “que quer combater as desigualdades” tem que ter um papel diferente do que tinha no passado”.
Nessa área, diz, os nutricionistas podem fazer a diferença – nos cuidados primários, nas unidades de saúde familiar, e também fora do sistema de saúde, em locais como as creches e as escolas, as universidades. Mas propor isto é ser “contrapoder” – “temos um programa que diz menos medicamentos, menos cuidados de saúde e mais poder às pessoas fora do sistema de saúde, e isso é completamente um contrapoder”. É preciso uma mudança de perspectiva: “Por cada 100 euros que o país gasta em saúde, gasta um em prevenção. A aposta na prevenção não existe.”
Uma das coisas que é hoje clara para o ex-director do PNPAS é que não basta dar informação às pessoas para que elas façam as melhores escolhas alimentares. Esse foi “o modelo central das políticas alimentares” durante décadas, mas houve um momento em que se constatou que “apesar de haver cada vez mais gente capacitada, a prevalência da obesidade, da diabetes, continuava a crescer”. “Alguma coisa estava errada”, conclui.

Foi nos anos de 2008/9 que se decidiu que era preciso o Estado ter uma política mais interventiva. “Começou-se a falar do ambiente obesogénico”, que significa que, por muito informadas que estejam as pessoas, se estiverem com pressa e a oferta que tiverem à mão seja comida de má qualidade, é essa que vão comer. Alterar isso “é intervenção política” e “é algo do qual o Estado se demitiu durante anos”.
O PNPAS “foi muito pensado para perceber o que poderíamos fazer para modificar o ambiente que rodeava as pessoas”. Não foi tarefa fácil. “Isso colocou-nos numa área muito arriscada, com muitos lobos, gente muito forte e onde nós somos frágeis”, diz, dando como exemplo as negociações com a indústria, onde “há gente que faz isto há 30 anos”. A grande vantagem, acredita, é que a direcção do PNPAS “conseguiu sobreviver aos ciclos políticos”, o que é a “única forma de termos voz e capacidade de intervenção”.

Essa política activa tem passado por medidas como a redução do sal e do açúcar na charcutaria e lacticínios, a taxação das bebidas açucaradas, a obrigatoriedade de oferta de uma alternativa vegetariana nas cantinas públicas. Houve, naturalmente, reacções. Recorda, por exemplo, como a indústria alimentar argumentou que a taxação das bebidas açucaradas iria levar ao “despedimento maciço” de trabalhadores. “É um argumento engraçado porque a maior parte das fábricas está completamente automatizada e empregam menos gente que os dez cafés ali à volta”.

Aquilo que constatou foi outra coisa: “Nós estávamos a discutir a probabilidade de haver taxa e, nesse mesmo dia as empresas estavam a reformular completamente os produtos. Passaram a vender mesmos produtos, só que com menos açúcar. Não houve ninguém que tivesse perdido negócio, pelo contrário, até criaram uns light e ampliaram a gama dos produtos à venda.” E essa foi, até agora, uma das grandes vitórias do Programa. “Hoje, a probabilidade de qualquer consumidor, mesmo sem saber ler rótulos, escolher uma bebida com menos açúcar é muito maior do que há dois anos. Criámos um ambiente menos obesogénico."
Mas houve outros momentos difíceis. “Curiosamente, a introdução da oferta alimentar saudável nos hospitais deu muita luta, muitas vezes devido à oposição das próprias pessoas dos hospitais. Não compreendo que um profissional de saúde diga que é maior e vacinado e por isso pode comer o que quer. Nós temos que dar o exemplo. Não acredito que um hospital deva poder ter disponíveis produtos de má qualidade – uma pessoa está no consultório a ouvir dizer que não os deve comer e à saída da consulta está uma máquina com esses produtos?”

A preocupação com uma política alimentar surgiu com Francisco Gonçalves Ferreira, “o pai da nutrição em Portugal”, logo nas décadas de 60 e 70 do século XX. O problema é que ele “apanha o momento do 25 de Abril e, quando se começa a ter capacidade para fazer alguma coisa, Portugal entra na CEE e com objectivos muito grandes por parte da agricultura.”

Eram tempos muito diferentes, em que “a produção mandava muito mais do que manda hoje e os grandes grupos de distribuição ainda não existiam”. Enquanto isso, na Faculdade de Nutrição, desde 1997 que Pedro Graça “dava aulas sobre um assunto que não existia”, precisamente a política alimentar, mas adaptada a um país imaginário porque sobre o país real não havia dados estatísticos.

E assim continuou a ser até que “em 2007 há, a nível europeu, uma ideia clara de que a obesidade estava a crescer para níveis preocupantes, começava a condicionar os orçamentos dos países e era uma coisa imparável [e esse] foi um pouco o detonador das políticas alimentares”. Em Portugal cria-se a Plataforma Nacional Contra a Obesidade, que evolui depois para o PNPAS. Mas continua a não haver números. E esse é um problema que acaba por se resolver graças aos… noruegueses.
Quem vendia os produtos tinha a informação toda, mas nunca nos deu nenhuma”, recorda. As negociações tornavam-se difíceis porque do lado da DGS não havia números para contrapor aos que lhe eram dados pela indústria. A solução foi uma candidatura aos EEA Grants, fundos financiados pelo Liechtenstein e a Noruega, que abrangiam também a saúde pública. Foi esse dinheiro que permitiu que se fizesse o primeiro Inquérito Alimentar Nacional, que deu um retrato do que se passava no país, do consumo, da adesão à dieta mediterrânica, da insegurança alimentar. Pedro Graça deixa uma interrogação: “Como é que Portugal, que gasta dinheiro em tanta coisa, teve que ter a Noruega a pagar a fotografia do estado alimentar da população?”.

“Ainda temos uma visão romântica da comida tradicional”
“Não podemos regressar ao antigamente para nos protegermos”, avisa Pedro Graça, o ex-director do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS). “O futuro devia integrar a nossa identidade gastronómica, mas não creio que só isso seja suficiente”.

O nutricionista considera que é preciso ultrapassar a ideia de que “tudo o que é tradicional faz bem” porque ela “só prejudica a evolução e pode causar problemas de saúde”. Um exemplo, a charcutaria portuguesa, que “é excelente”, mas muito fumada e salgada. A solução, segundo Pedro Graça, seria conseguir “manter o sabor e a possibilidade de ter uma população rural a produzi-la, mas modificando os processos de confecção para ter menos sal, menos substâncias fumadas, menos nitritos”, reduzindo assim o risco. “Será que não podemos chamar a ciência para ajudar nisto?”. O problema é que há ainda muita resistência de “gente que diz ‘no meu chouriço e na minha alheira ninguém toca’ e é com isso que estamos a lutar todos os dias”. Se não houver uma mudança de atitude, “arriscamo-nos a ficar acantonados numa aldeiazinha de gauleses, óptima para ser visitada por turistas, mas que não é óptima para quem sabe de ciência”.

Outro grande desafio para o PNPAS no futuro é a questão ambiental. “O crescimento demográfico e a pressão ambiental vão modificar completamente a forma como se produzem alimentos e como se come”, alerta. “Estamos a atingir um ponto em que é preciso reflectir seriamente sobre isso e vai haver consequências políticas. Se alguém disser agora que só podemos comer produtos produzidos à nossa volta, e se alguém em África precisar de exportar comida para sobreviver, o que é que lhe vai acontecer? Ou quando as escolas começarem a dar carne só duas vezes por semana, o que vai acontecer ao mundo rural?”.

Pedro Graça admite que no futuro, para além da informação nutricional, os produtos passem a ter informação sobre o impacto ambiental. Defende, por isso, uma muito maior aproximação entre os ministérios da Saúde e do Ambiente para a definição de estratégias alimentares. Até porque neste momento, o que temos é “uma secretaria de Estado da Alimentação que dá essencialmente voz às estratégias do Ministério da Agricultura.

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