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A violenta e caótica colisão entre Tubarões e Meros

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A violenta e caótica colisão entre Tubarões e Meros Empty A violenta e caótica colisão entre Tubarões e Meros

Mensagem por Barão Vermelho Ter Abr 02, 2019 12:03 am

Na extremidade meridional do atol de Fakarava (um rectângulo de coral com 60 quilómetros de extensão na Polinésia Francesa), um canal estreito divide a barreira de recife. Todos os anos, no mês de Junho, milhares de meros reúnem-se nesse canal para a desova da próxima geração. Violentas correntes de maré entram no canal a cada seis horas, enchendo e esvaziando a lagoa. Os meros não estão sós: centenas de tubarões-cinzentos-dos-recifes também confluem ali, para persegui-los. As fêmeas passam, no máximo, alguns dias no território de desova. Contudo, por qualquer razão, os machos que levam existências solitárias durante a maior parte do ano, passam semanas amontoados neste local traiçoeiro. Por fim, todos os peixes desovam em simultâneo, libertando nuvens de ovos e esperma na água. Segundo a população autóctone, o acontecimento desenrola-se quando a Lua está cheia.
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Eu e a minha equipa passámos os últimos quatro anos a tentar documentar este espectáculo maravilhoso e misterioso. Durante 21 semanas, mergulhámos noite e dia, acumulando cerca de três mil horas de mergulho num canal com 36 metros de profundidade. No nosso primeiro ano, em 2014, os biólogos Johann Mourier e Antonin Guilbert fizeram as primeiras contagens: havia cerca de 17 mil meros e 700 tubarões-cinzentos-dos-recifes no canal. Nesse ano também, realizei um mergulho contínuo de 24 horas, uma proeza técnica que exigiu o apoio de toda a equipa.
O objectivo era observar os peixes da mesma forma que um biólogo observaria em terra, ininterruptamente e durante um longo período de tempo.


Quando o Sol se pôs na primeira noite, vi crustáceos e moluscos emergirem das profundezas. Vi os meros escurecerem a sua pele e retirarem-se para o interior de fendas para dormir. Vi também os tubarões ganharem vida. De dia, nadam languidamente, pois os meros despertos são demasiado rápidos para eles. No entanto, quando a noite cai, os tubarões reúnem-se às centenas junto do leito marinho. A água estava electrificada com a sua presença e eu percebi que subestimara a sua velocidade. A agitação era inquietante: devido à mistura gasosa que eu estava a respirar neste mergulho de 24 horas, não podia subir para um local seguro quando quisesse. Tinha de permanecer lá no fundo com os tubarões.
Nos anos seguintes, superei o medo e senti a alegria excitante de me aventurar sem gaiolas, fatos de cota de malha ou varas afiadas, no meio de um cardume de tubarões. Em Fakarava, descobri que os tubarões caçam em grupo, à semelhança dos lobos, embora de forma menos cooperante.

Um tubarão solitário é demasiado desajeitado para capturar um mero sonolento. Um cardume tem mais probabilidades de espantar os peixes do seu local de esconderijo e cercá-los, desfazendo-os em seguida. Visto ao vivo, o ataque é um frenesi que explode diante dos nossos olhos. Só mais tarde, graças a uma câmara especial operada por Yanick Gentil, capaz de captar mil imagens por segundo, é que somos capazes de ver os tubarões em câmara lenta e apreciar a sua eficiência e rigor.
Para os tubarões, os seres humanos são obstáculos e não alvos. Quando mergulhamos à noite, aproximam-se de nós. O mais ligeiro movimento ou raio de luz atrai-os. Por vezes, embatem contra nós com força suficiente para produzir um hematoma. Por vezes, acalmamos um tubarão excitado agarrando-lhe a cauda e virando-a sobre o seu dorso, induzindo-o numa espécie de transe.

Os tubarões-cinzentos-dos-recifes devoram centenas, talvez milhares, de meros durante as semanas em que os peixes se juntam em Fakarava. Ferem muitos mais. Na manhã depois do meu mergulho nocturno, fotografei uma galeria de sobreviventes. Os ferimentos eram graves: barbatanas rasgadas, opérculos arrancados. Mesmo neste estado lastimável, porém, os meros parecem resolutos. Os machos desafiam-se mútua e sucessivamente, em combates mano a mano, lutando histericamente pelo domínio. Continuam escravos do seu instinto reprodutor.

Na nossa mais recente expedição, em 2017, conseguimos finalmente ver a causa de tudo isto. No dia da desova, o ecossistema muda: a água enche--se de dezenas de milhares de fuzileiros-de-banda-negra, semelhantes a sardinhas, que sentem que algo se passa. As fêmeas, inchadas devido aos ovos, descansam, protegidas pela sua coloração camuflada, sobre o leito marinho. Os machos observam-nas do alto. De vez em quando, um macho desce para se mostrar e provocar uma fêmea: morde-lhe a barriga, presumivelmente para induzir a desova.

De repente, tudo começa e é um pandemónio. Cardumes com cerca de uma dezena de meros disparam para cima, à nossa volta. Cada cardume é composto por vários machos perseguindo uma única fêmea. Os tubarões intrometem-se na confusão, quase sempre sem sucesso, pois os meros são demasiado rápidos. O acto sexual em si dura menos de um segundo. Mal conseguimos ver o que está a acontecer. Os fuzileiros-de-banda-negra bloqueiam a nossa visão, correndo para engolir nuvens de ovos de mero e sémen assim que estes aparecem. Os ovos remanescentes são misturados de forma aleatória pela poderosa corrente de maré e transportados para o mar.

Este espectáculo anárquico termina em menos de uma hora e ficamos a pensar na sua finalidade. De que serve ao mero lutar contra outros machos durante semanas, arriscando-se todas as noites a ser desfeito por tubarões, se no final não fica com uma fêmea e não sabe se foi o seu esperma que fertilizou os seus ovos? Parece um desperdício de energia, algo que a natureza costuma abominar.
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Mais uma vez, Yannick Gentil está no sítio certo à hora certa. A sua câmara capta aquele acto de um segundo entre um casal de meros. Visto em câmara lenta, tudo se torna claro: o macho que ganhou o direito a estar mais perto da fêmea pode começar a acasalar com ela. Pressiona o seu corpo contra o dela durante o máximo de tempo possível. Os outros machos já estão a convergir sobre o casal, comprovando que não há exclusividade. O prémio arduamente conquistado pelo macho dominante, após quatro semanas de batalhas exigentes, é apenas ser o primeiro, ou seja, ter as melhores probabilidades de transmitir os seus genes.

A comunidade local tinha razão: tudo acontece sob a Lua cheia, mesmo antes da alvorada. No meu mergulho de 24 horas, antes da desova desse ano, tive tempo para apreciar o nascer do Sol, de ver o brilho azul ténue penetrar nas profundezas, onde aguardei, com os meros adormecidos. Naquele instante, ouvi baleias cantarem, provavelmente a muitos quilómetros de distância: fizeram-me lembrar sinos de igreja. Não sei se podemos sentir pele de galinha sob um fato de mergulho, mas acho que senti. Não sei para quem as baleias vocalizavam. Mas sei que vamos voltar a Fakarava em Junho.
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